Ponto Cardeal, Léonor de Récondo
Ponto
Cardeal (editora Dublinense, 2020, 172 p.) é o quinto
romance da escritora francesa Léonor de Récondo e conta, com graça, leveza e
profunda emoção, a vida de Laurent, um homem casado e pai de dois filhos, que
realiza a “transição” para uma vida feminina, definindo-se como mulher, declarando-se
mulher trans.
Uma trama bem escrita
(e, acredito, bem traduzida) que lida com os dramas sociais, familiares,
psicológicos e as dificuldades em se reconhecer, no íntimo, com outro gênero,
em uma sociedade pautada pela imensa dificuldade de aceitação da diferença; uma
sociedade que, por exemplo, toma o futebol “como a apoteose da masculinidade”
(p. 25).
Na relação com a
esposa, ou melhor, com o corpo dela, Laurent lida com o encantamento e frustações:
“Eu queria ser você, queria ser teu corpo” (p. 44). Mas apenas o tempo ditaria
o ritmo da transformação, o tempo vivido, diferente para cada um: “Quanto tempo
é preciso para a gente ser a gente mesmo?” (p. 75). Enquanto isso, o personagem
vive os papéis sociais esperados, uma vez que impõem-se a necessidade de
representar, de ser e dizer o que não se é.
De uma sensibilidade
apurada, várias passagens do livro são capazes de emocionar a quem consegue se
colocar no lugar do outro: “Se por um lado eu jamais me senti homem, por outro
eu sempre me senti pai” (p. 80).
Uma vez transexual e
decidida a viver plenamente feminina, passa a enfrentar as diferentes reações negativas,
advindas de colegas de trabalho, vizinhos, amigos e principalmente, familiares.
“Mas quem você pensa que é? Uma bicha? Perdeu a cabeça ou o quê? Você se dá
conta de que está fazendo papel de idiota?” (p. 133). Mas a decisão vem
acompanhada de um amadurecimento que afasta antigos receios e promove atitudes
pautadas na naturalidade das ações e reações. A reação da família é diversa,
afinal “a gente não sabe nunca de onde vêm os golpes, e os piores vêm quase
sempre dos mais próximos” (p. 135). E uma dúvida pertinente surge: “Será
possível conhecer tão pouco alguém com quem se viveu toda a vida?” (p. 87-88). O
filho do protagonista representa os piores efeitos do machismo e do preconceito
social arraigados no pensamento ocidental. A filha adolescente surpreende com a
capacidade de tomar a causa para si. E a esposa, com lucidez e maturidade, dissipa
mágoas e compreende a nova configuração que surge, afinal, “é apenas uma
questão de gênero” (p. 139).
O livro é lindo demais,
daqueles que, após o término, nos deixa um pouco melancólicos.
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