Crocodilo - Javier Contreras
Se à primeira vista, é possível dizer, sem dúvida, que o enredo dessa obra literária trata do significado do suicídio nas sociedades ocidentais contemporâneas, eu diria que, acima de tudo, trata da morte. Da morte (suicida) e das estranhas sensações que marcam aqueles que vivem o luto, diante da urgência da vida e do atropelamento de um cotidiano que exige normalidade e impulso de vida contínuo. Exige porque se os temas fúnebres são evitados e o suicídio rechaçado, então, diante da morte, é praticamente impossível parar e sofrer. O sofrimento é quase motivo de deboche e o livro de Javier Contreras é uma demonstração bem interessante de como a sociedade lida, disfarça e ironiza os sentimentos ligados à morte. O luto, o choro, o pesar devem ser contidos, escondidos, guardados ou ultrapassados o mais rápido possível. A dor do outro pode ser compreendida, mas não compartilhada. Não há tempo “a perder”.
O autor/narrador traz
uma concepção bastante ampliada do suicídio e tenta romper com qualquer
moralismo que contribua para convertê-lo ou mantê-lo como um tabu, ou, ao menos,
compreender os motivos que conduzem nossa sociedade a evitar ou abrandar a referência ao suicídio, adjetivando-o apenas como “tragédia”. Expõe de modo
direto e com uma clareza potente os sentimentos e pensamentos mais torpes que culturalmente
se manifestam por meio do silêncio, do não dito, tal como por exemplo, aqueles
expressos nos comportamentos hipócritas em rituais de velório, marcados às
vezes pela indiferença ou (estranho?) comprazer em ver o corpo morto ou a
vulnerabilidade alheia.
De qualquer forma,
estamos todos imersos no processo histórico-cultural. Se o autor/narrador faz
uma crítica ao silêncio (linguístico) sobre a morte e, principalmente, o
suicídio, por outro, diante do luto imediato, ele mesmo pede silêncio (ainda
que seja apenas o comportamental): “o que se deve dizer a um pai e a uma mãe
quando o filho morre? Quando não se é íntimo, nada. Apenas acene e disfarce”
(p. 50). Além disso, o autor/narrador também ameniza o possível sentido de
gravidade do morrer, que, em dado momento, é sutilmente entendido como “ir embora”
(p. 64), mesmo que apenas como uma figura de linguagem.
Somos conduzidos pelo
narrador a refletir sobre um entendimento racional do suicídio, que o expõe como
“uma morte voluntária”, “uma atitude extremamente pessoal”, ou “um ato
violento, grosseiro, vulgar” (p. 44), um “morrer por vontade própria” (p. 70). Como
a psicologia ganha ênfase na trama, em determinado momento, o narrador parece
concordar com uma explicação científica para o suicídio: aquela que aponta para
o “profundo vácuo sem sentido do mundo” (p. 116) que pode dominar a mente
humana.
Um narrador pragmático,
detalhista, extremamente crítico de si, que reiteradamente se reconhece
enquanto covarde. Um pai culpabilizado e com razão inconformada em busca dos
motivos que levaram o filho a cometer suicídio – “ele era tão feliz, mas tirou
a própria vida”. Essa é a tônica que permite o desenrolar da história, a qual,
por opção, não vou aqui detalhar. Em síntese, aquela conhecida história: o
sujeito que se dá conta dos seus valores e do modo como tem levado a vida a
partir da perda de um ente querido.
Vale dizer que os
personagens me pareceram bem desenvolvidos e coerentes. Quem vive hoje na faixa
dos 40 anos – e não carrega consigo os falsos moralismos em defesa dos “bons
costumes” da “família tradicional” – certamente vai se identificar ora com o
narrador, Ruy, de 73 anos, ora com Pedro, o filho suicida misterioso como um
crocodilo submerso, de 28 anos.
Fica
evidente que a tentativa de entender os motivos que levam ao suicídio, faz
traçar inúmeros aspectos da possível personalidade do sujeito que tira a
própria vida. Parece-me que há uma tendência nessa caracterização do outro. Se
Javier Contreras aponta Pedro como “estranho”, aquele “que vivia pensativo, no
mundo dele” (p. 122), Roberto Bolaño, por exemplo, em um conto na obra Putas assassinas, dizia – não sem ironia
– que Gui Rosey “parece ser sofredor e solitário, com olhos grandes e
vidrados... Na certa se suicidou”.
É
possível mencionar que, ao menos na literatura portuguesa contemporânea, o
suicídio vem sendo pautado, seja através de romances, como Homens imprudentemente poéticos (2016), de Valter Hugo Mãe, seja
através de outros gêneros literários, como aquelas com apelo ao grande público,
como Suicídios famosos em Portugal
(2007) de José Brandão.
Outros temas também são
bastante desenvolvidos no livro, e de modo bem sincero, como as renúncias em
nome da paternidade/maternidade, o sofrimento humano com o luto e a velhice.
O livro de Javier
Contreras é mais do que uma ficção, é uma obra informativa, quase um ensaio
filosófico, antropológico e político sobre a nossa dura realidade. Tão triste,
que (a leitura) chega a doer.
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