Ponciá Vicêncio - Conceição Evaristo

 


Narrada em terceira pessoa, a obra carrega um tom melancólico ao traçar o passado sofrido da protagonista, uma mulher negra chamada Ponciá Vicêncio. O que predomina é a força negativa, mas necessária, de certas lembranças tristes. A dor e o tormento entre aquilo que não se pode e não se quer esquecer. Trata-se do empreendimento de uma memória dolorosa, “viva e dolorida” (p. 77). A narradora aponta sua intenção de não ferir essa memória (p. 22). A importância do lembrar se impõe, pois Ponciá “precisava levantar algumas histórias do passado” (p. 24). O dever de memória ganha relevância: “imagens de um passado se presentificam aos olhos de Ponciá Vicêncio” (p. 52). São estes aspectos que se apresentam marcantes nesse romance da escritora mineira Conceição Evaristo (1946 - ).

            O livro vai tecendo essa memória, com a força dos vínculos familiares (mãe, pai, irmão, avô) e comunitários, da ligação simbólica com os ancestrais (o avô morto/ausente, mas tão presente) e da transmissão de saberes (o manuseio do barro). A vida de Ponciá está inscrita no coletivo familiar e social, muitas vezes de experiências traumáticas. Suas memórias não reivindicam diretamente nada, mas denunciam as injustiças sociais que se deram em um passado e que ganham reflexos no presente.  

Ao narrar essas lembranças por meio da protagonista, a autora cumpre um papel – literário e imaginativo – de construir uma versão do passado que por muito tempo foi relegado ao esquecimento. Um passado sensível, marcado por todas as agruras e explorações que negras e negros brasileiros passaram e passam no Brasil. Daí o reconhecimento de que “os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida” (p. 70). A liberdade apenas como um ato jurídico da abolição é percebida por Conceição Evaristo com criticidade e certa ironia: “Sonhando todos sob os efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha, que do antigo chicote fez uma varinha de condão. Todos, ainda, sob o jugo de um poder, que, como Deus, se fazia eterno” (p. 42). Uma exploração contínua, “eterna”, que mantinha negros e negras em condições servis no campo ou em completo abandono nas cidades.

A memória da personagem volta-se a um passado do qual se faz herdeira e que precisa ser enfrentado e compreendido. Mas a relação com esse passado é afetuosa, marcada pela saudade e pelo perdão. As atitudes do avô (assassinato da esposa e tentativa de suicídio) não são julgadas, mas entendidas no interior de um contexto de opressão, cuja continuidade deve ser combatida.

Essa opressão social e econômica que atinge as populações negras no Brasil permite clareza a respeito das condições de vida que configuram, na prática, uma leitura de continuidade da escravização: “A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida” (p. 72).

A personagem Ponciá traz a necessidade da expressão dos sentidos, a vontade de falar, de ouvir, de compartilhar sentimentos, como as alegrias e as dores. Em várias passagens são as lembranças que mobilizam a personagem à ação. Mas também traz a condição do recolhimento, do silêncio, do devaneio solitário. Uma solitude que propiciava o rememorar: “Ponciá gastava a vida em recordar a vida” (p. 79), “ia e vinha no tempo cá dentro de seu recordar” (p. 48).

O livro impressiona por trazer ainda o testemunho de um pensamento racista que atravessa o tempo: “quase todo negro era vagabundo, baderneiro, ladrão e com propensão ao crime” (p. 102). Também é demonstração da resistência. Ao final, a narradora parece fazer um resumo de toda a obra quando descreve o encontro da mãe com a filha, Ponciá Vicêncio (p. 107), especialmente quando diz: “... a terra dos brancos, a resistência teimosa e muitas vezes silenciosa do negro, travestida de uma falsa obediência ao branco. O tempo ido e vindo” (p. 107).

É possível que o leitor se emocione em várias passagens da obra. A mim, o riso e o choro surgiram aqui: “Nunca esqueceu o dia em que patroa lhe pediu para que ela pegasse o peignoir e, atendendo prontamente o pedido, ela levou-lhe a saboneteira” (p. 38-39).

De leitura rápida (120 páginas), o livro “Ponciá Vicêncio” (Editora Pallas, 2017) foi o primeiro romance publicado pela autora (em 2003), embora o primeiro a ser escrito, segundo entrevistas da própria Conceição Evaristo, tenha sido “Becos da Memória”.

“Ponciá Vicêncio” é um livro tão importante para a autora que ela mesma reconhece, no prefácio da edição de 2017, sua identificação e afinidade com a personagem: “o choro da personagem se confundia com o meu, no ato da escrita”. Que coisa mais linda!

 


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