O avesso da pele – Jeferson Tenório

 


O avesso da pele, do escritor brasileiro Jeferson Tenório, publicado em 2020 pela Companhia das Letras, é literatura que cumpre com grande sensibilidade um papel importante e específico: o de apontar o profundo impacto do racismo a impactar a vida de negros e negras brasileiros a partir de uma variedade imensa de situações cotidianas vivenciadas por homens e mulheres. Um racismo estrutural que certamente atinge a experiência social de todos, sendo difícil não gerar, no leitor, alguma identificação, seja como vítima da discriminação racial, seja como responsável, motivador ou autor de racismos diversos.

A narrativa em primeira pessoa assumindo voz de outra pessoa, permitiu ao autor narrar, diversas vezes, o passado no presente do indicativo, descrevendo pensamentos e sentimentos (“você está comovido”, “você pensa”, p. 140). O tom linguístico somado ao fato de o texto soar como uma “carta ao pai” pareceu-me muito próximo ao estilo João Carrascoza. A abordagem de falar integral e unicamente pelo outro causa algum incômodo ao longo do livro. O uso constante do pronome “você” (“você faz”, “você mexe”, “você corre”, etc.) referindo-se a situações de um tempo passado, assim como o uso repetitivo de palavras marcantes tal como “fantasmas” são os poucos elementos mais fadigosos da obra.

Embora a construção narrativa peque pelo excesso de “você”, a linguagem dos primeiros capítulos fisga o leitor. Por outro lado, ao longo da obra, a impressão é a de que, pela memória do narrador, são compostas tramas paralelas e pequenas histórias independentes, que desviam, senão totalmente, uma parte da atenção do leitor, a tal ponto que a última parte parece assemelhar-se à escrita e à leitura de um diário.

Com uma prosa simples e direta, sem muita preocupação poética, a mensagem construída e comunicada é forte e intensa. Ao apontar os corpos negros como corpos em risco, especialmente diante de situações não circunstanciais de morte de pessoas negras, mas como política de Estado, o autor está denunciando a necropolítica brasileira.

Destaco uma passagem bastante eficaz na demonstração da ênfase para o que está além da cor da pele, no seu avesso:

“Você sempre dizia que os negros tinham que lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso” (p. 61).

Jeferson Tenório parece contar suas próprias experiências juvenis ao narrar a vida do pai do narrador. E muitos são os temas que compõem a obra, além do racismo e das complexas relações étnico-raciais, tais como a saudade, a morte, a memória, o afeto familiar e as precárias condições da educação escolar brasileira e do trabalho do professor.

        Apesar da capa pouco atraente, os elementos principais, como a constatação da desigualdade étnico-racial, das situações de violências racistas, da relevância da consciência negra e do peso carregado pelos negros e negras em uma sociedade que discrimina pela cor da pele são contundentes, levando o leitor a perceber claramente o quanto somos, sim, uma sociedade racista, ainda que muitas vezes teimamos em negar essa evidência.

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