Abandonado - Vinícius Pinheiro

 

 Possível título da resenha: “Quem diabos é você?”

Um livro de escrita peculiar, com passagens hilárias, marcado pelo tom irônico, especialmente no uso de metáforas e adjetivações na composição e caracterização dos personagens e das próprias experiências que moldam o enredo.

Bem escrita, a obra de Vinícius Pinheiro vai fisgando o leitor a partir de um encadeamento dinâmico, ativo e plausível, capaz de apresentar sempre nova surpresa a cada pequeno capítulo. Quase impossível parar de ler. Faço essa resenha, sem qualquer compromisso de coesão textual das ideias; são, muito mais, pequenos apontamentos independentes a cada parágrafo.

A trama em si, envolve as experiências de vida, de trabalho, de relacionamentos e de família de Alberto Franco, um jovem roteirista e jornalista em busca de reconhecimento e estabilidade, que passa a escrever um roteiro para o cinema a partir de um livro, e que tem algum medo do fracasso. O personagem é leve e, ao mesmo tempo, insatisfeito, uma marca do anseio juvenil em busca de um firmamento de vida. Um sujeito talvez abandonado, mas que sabe muito bem se virar sozinho. Por outro lado, busca consolidar sua própria identidade, “quem diabos é você?”, pessoal e profissional.

Nada é dito sobre quando tudo se passa. O leitor não tem informação sobre o horizonte temporal da história. A narrativa é a memória do narrador sobre eventos da sua própria vida em um passado indeterminado. Como o livro foi publicado em 2015, fui levado a crer que tudo ocorrera no início dos anos 2000.  

O autor cria um personagem que não apresenta qualquer modéstia, que se gaba o tempo todo da sua suposta boa capacidade de domínio da escrita, com “apuro estilístico” (p. 137), altamente convicto sobre sua capacidade criativa: “meu verdadeiro dom era escrever” (p. 19). Alberto Franco é o protagonista e o narrador (em primeira pessoa), talvez o alter-ego do autor.

Em determinado momento, o narrador passa a conversar com o leitor (p. 72-73) e esse recurso ganha constância nos capítulos seguintes, trazendo a sensação característica da leitura de uma missiva direcionada a um interlocutor compreensivo, porque torna o leitor cúmplice da narrativa.

“Sabe, quando comecei a lhe escrever não pensei em nada disso. Creio que jamais serei frustrado, ao menos no campo literário, porque escrevo sem nenhuma expectativa a não ser a de que você leia. E se você chegou até aqui significa que eu não sou um escritor frustrado” (p. 96).

Depois, a conversa com o leitor dá lugar à conversa com o autor do livro que o protagonista transpõe – em roteiro – para o cinema, um sujeito inicialmente não-revelado. E, assim, a suspeita sobre a identidade desse autor vai ganhando contornos até a revelação.

É interessante, por exemplo, perceber as indiretas e engraçadas referências a letras de músicas, que, talvez, alguns jovens, hoje, não relacionem de imediato; à Raul Seixas (“Metamorfose ambulante”): “no mesmo espírito metamórfico ambulante” (p. 56); ou à Roberto Carlos e Erasmo Carlos: “Eu voltei, mãe. Voltei para ficar” (p. 75). Em outras passagens, a ironia se impõe: “o sexo acontecia sem emoção, como se fôssemos um casal feliz” (p. 58); “todo bebê recém-nascido tem a mesma cara de quem era feliz e não sabia” (p. 168).

Em vários momentos faz pensar em certas dificuldades e inconveniências que acompanham a profissão jornalista, não pela trabalho em si, mas pela pressão, concorrência, inveja e mal estar que podem imperar entre colegas de trabalho. E também na relação entre experientes e novatos marcada por arrogâncias, invejas e preconceitos – a exemplo da passagem: “melhor deixar o trabalho na imprensa para espertinhos metidos a intelectuais” (p. 45). Também faz menção à reputação, ao desejo de fama e aceitação e ao suposto trabalho exaustivo nas redações, a “escravidão travestida de jornalismo” (p. 121).

Existe, no livro, alguma tentativa de afirmação de masculinidade, mesmo que seja a contrapelo, tentando demonstrar as fragilidades ou ausências de singularidades reconhecidas social e culturalmente como másculas. Assim, ao longo da narrativa, percebe-se referências (independentes do contexto ficcional) à virilidade, ao desempenho sexual, aos fetiches sexuais, às “escapadas” inevitáveis, ao tamanho do pênis, etc.

Além disso, o que me incomodou e me decepcionou bastante, foi o evidente preconceito do personagem Alberto Franco: “Era a primeira vez que o encontrava desde que decidira virar gay” (p. 138). Pergunto: virar gay faz sentido? É claro que não. Na sequência, diz: “mas ele não demonstrava um mínimo de frescura capaz de levantar suspeitas” (p. 139). Então, ser gay necessariamente precisa apresentar um mínimo de frescura? É claro que não. Depois diz: “em nenhum momento ele demonstrou alguma atitude comprometedora” (p. 139). Pergunto: haveria de demonstrar? Eu sei que pode ser lido como uma característica do personagem que supostamente reflete o pensamento homofóbico estrutural, mesmo assim, considerando ser um personagem intelectualizado, arrojado, ligado à comunicação e às artes, um indivíduo do século XXI, poderia, na minha opinião, ter sido construído por outro caminho no pensamento em relação à homossexualidade.  

Fiquei em dúvida quanto ao sentido de uma passagem da obra, mas talvez eu possa estar enganado. Em determinado momento, o personagem escreve um crônica sobre uma partida de futebol e este texto acaba sendo criticado pelo editor do jornal, que o retira imediatamente do site. No entanto, posteriormente, o narrador aponta que a crônica foi indicada para uma premiação jornalística. Fiquei me perguntando: poderia ser indicada, mesmo sem estar publicada? Equívoco de minha leitura? Ou contradição da trama? Ou foi proposital, afinal é apenas uma ficção?

O cigarro é bastante criticado, tido como o “câncer portátil” (p. 13), o elemento “que tornava o ambiente um pequeno cemitério de almas vivas” (p. 62), mas o jovem protagonista termina fumando cigarro (p. 160) e não dispensa a erva, afinal, “passávamos o tempo fumando maconha” (p. 51), “sempre chapados” (p. 170).

A referência constante a uma vidente que dizia “tudo está escrito”, tornou-se um aspecto repetitivo no livro e um pouco enfadonho. Um outro elemento aparentemente bobo, mas que me incomodou foi nomear os policiais como “tiras”, algo absolutamente não-usual na nossa linguagem, exceto nas dublagens de filmes dos anos 1990.

Ao referir a “catástrofe que abalaria toda a espécie” (p. 144), o autor parece antecipar o mundo pandêmico do coronavírus em que vivemos hoje.

Ao ler o livro, confesso que me identifiquei em vários momentos e não sei explicar muito bem por quê. Talvez pelas minhas memórias sobre as descobertas e vivências dos desejos e ansiedades que marcam o início da autonomia do mundo adulto, quando se tem vinte e poucos anos e se quer viver tudo com plenitude.

Publicado em 2015 pela editora Geração Editorial, 186 p., o livro do paulista Vinícius Pinheiro (1977-) é bom demais, inquieta e faz ri. Recomendo leitura.



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