Mac e seu Contratempo, Enrique Vila-Matas
O parasita da repetição ocultado em toda criação literária
O livro é apresentado não como um
romance, que o narrador/autor parece detestar, mas como um diário, uma forma de
aprendizado da “escrita da literatura” (p. 36), já que ele se define como “principiante
na escrita literária” (p. 163). O narrador/autor diz inicialmente não estar
interessado na relação realidade/ficção, mas entre “o simples e o complexo na
literatura” (p. 236), e opta, notadamente, pelo complexo. Ele não estima os best-sllers, que trabalhariam com a
superficialidade (p. 135). Mas, “por sorte ainda restam autores (...) nos quais
há uma busca ética (...) em sua luta por criar novas formas” (p. 136). Na
verdade, porém, o autor/narrador está interessado na realidade: “a realidade
(...) é uma fascinante e incessante Usina criativa” (p. 134). Desse modo, por
exemplo, opta por passear frequentemente pelo bairro onde vive para buscar
inspiração e aguçar a imaginação.
Para o narrador/autor, a produção
literária é pautada na imitação e repetição. “Não seríamos nada sem a imitação”
(p. 31) e “não há ninguém no mundo que não se repita” (p. 31). Narrador/autor
diz que “o parasita da repetição” se “oculta no centro de toda criação
literária” (p. 18 e p. 201). Interessante que o autor não apenas trata da
repetição, como ele mesmo se repete (será que propositalmente?). Como o
narrador/autor quer nomear seu escrito como um diário, que registra “atividades
triviais”, por vezes, fica-se com a impressão de que o livro torna-se mesmo
trivial e um pouco repetitivo.
Autor diz preferir contos aos
romances. Para ele os romances “às vezes dramatizam demais os acontecimentos”
(p. 194). A literatura “para mim é uma forma de preservar aquela chama do que
foi dito de viva voz” (p. 212). E “ao nosso alcance só existe uma falsificação”
(p. 212).
Enrique Vila-Matas se propõe,
então, produzir literatura sem uma nomenclatura pré-estabelecida, conjugando
diferentes formas de criar e de se expressar através da escrita. Marcel Shwob
teria sido o pioneiro “nesse gênero especializado em misturar invenção e dados
históricos reais” (p. 118).
Para o narrador/autor há dois
tipos de escritores de ficção: aqueles “que acreditam que um relato que conta
uma história verídica é um insulto à arte e à verdade”, e aqueles que “pensam
que a realidade pode ser reproduzida com exatidão” (p. 102). O autor estaria no
primeiro grupo.
A obra “Mac e seu contratempo”
apresenta-se como uma reflexão sobre a tentativa do narrador de
reescrever/recriar a obra “Walter e seu contratempo”. Essa obra teria sido
escrita por um vizinho, chamado Sanchez. E a tentativa do narrador (chamado
Mac, mais precisamente Mac Vives Vehins, como se descobre apenas na página 242)
seria “melhorar em segredo a obra literária do vizinho” (p. 38), escrita 30
anos antes, sendo um “romance esquecido” (p. 53).
A justificativa para reescrever “Walter
e seu contratempo” estaria no aprendizado da escrita e na possibilidade de
conhecer melhor o autor que seria “copiado” (p. 53). Na verdade, a impressão
que fica, é a de que o autor de “Walter e seu contratempo” é o próprio
narrador/autor da obra que será reescrita/copiada/imitada/melhorada.
Possivelmente uma obra de Enrique Vila-Matas escrita há 30 anos e reescrita
pelo próprio autor. Estamos diante de um “copiar-se”, de uma reinvenção. “Eu
sou o Walter”, assume o narrador no final da obra (p. 265). Antes disso, porém,
o leitor pode concluir por alguns indícios. Por exemplo: o leitor sabe que quem
bebe rum é o narrador Mac, e passagem da p. 130-131 leva a entender que o
narrador de “Walter e seu contratempo” não é Sanchez, mas o próprio Mac/o
próprio Vila-Matas. É um indício de que a obra de Vila-Matas busca
revisitar/reescrever/refletir sobre a escrita e a literatura referenciada é uma
obra de sua própria autoria, escrita e guardada há décadas.
Desde o início, o narrador/autor
diz admirar livros póstumos, de livros inacabados, de livros falsificados.
Sente vontade de falsificar (p. 146). Talvez um outro título para este livro de
Vila-Matas pudesse ser “Diário de um construtor destruído” (p. 142). Sua ideia
seria produzir uma obra que parecesse interrompida, mas que estaria
absolutamente terminada (p. 39). Afinal, “tanto faz como continue ou deixe de
continuar” (essa frase ganha vários sentidos ao longo do livro) (p. 110). O
elemento mais admirado pelo narrador/autor é o romance interrompido pela morte,
o inacabado – o contratempo da morte para completar o texto, tal como, segundo
o autor, o romance de Georges Perec – logo, um romance que só parece
interrompido e incompleto (p. 233).
Após ler “Mac e seu contratempo”
fiquei pensando sobre os gostos do autor. Creio, então, que Enrique Vila-Matas
aprecia ler contos, viver em família, beber, fumar, meditar sobre a vida,
passear por Lisboa. E algumas impressões sobre aspectos psicológicos da
personalidade do autor: teria ele vontade de “largar tudo e sair correndo” (p.
92), teria pequenos desgostos amorosos e manifestaria ciúmes com alguma
frequência.
Destaquei algumas passagens:
“Escrever é deixar de escrever”
(p. 12).
“Escrever é deixar de ser
escritor” (p. 12).
“Eu sou um e sou muitos e
tampouco sei quem sou” (p. 287).
“O domingo cria um vazio que
sempre é nossa ruína” (p. 191).
“A morte fala conosco com uma voz
profunda para não dizer nada, para não dizer nada, para não dizer nada” (p.
201).
Autores citados por Enrique
Vila-Matas na obra:
Alberto Savinio
Agatha Christie
Alan Pauls
Alain Robbe-Grillet
Alejandro Zambra (“Meus
documentos”).
Antonio Di Benedetto (livro “Zama”)
Arthur Schopenhauer
Barry Gifford
Bem Hecht
Bernard Malamud (“The Fixer”)
Bioy Casares
Charles Lamb (“Melancolia dos
alfaiates”)
Cyril connolly (“O túmulo
inquieto”)
David Foster Wallace
David Markson
Del Giudice (“O estádio de
Wimbledon”)
D. Diderot
Djuna Barne
Dora Rester
Edgar Allan Poe (poema ‘Corvo’)
Erich Von Stroheim (“O grande
Gabbo”)
Ernest Hemingway
Fernando Aramburu
Fernando Pessoa
Fietta Jarque
Fiódor Dostoiévski
Franz Kafka
Friedrich Nietzsche
G. K. Chesterton
Georges Perec (“53 dias”)
Giles Deleuze
Gógol (“O capote”)
Hebe Uhart
Henryk Sienkiewicz
Isak Diresen
Jan Kott
Jean-Nicolas Rimbaud
Jean-Nicolas Rimbaud
Jean Rhys
Joe Brainard
John Cheever
José Mallorquí
Jorge L. Borges
Júlio Cortázar
Knausgard
Louis-Ferdianand Céline (Vila-Mata cita o "primeiro
romance", que seria "Viagem ao fim da noite")
Luís Pimentel
Malarmé
Marcel Proust
Marcel Schwob (“Vidas imaginárias”,
1896)
Marcelo Alé
Marco Polo
Mathieu Zero
Max Brod
Michel Leiris
Mundigiochi
Nathalie Sarraute
Norman Daniel
Petrônio
Pierre Menard
Pierre Michon
Philip K. Dick
Philip Roth
Ray Bradbury
Raymond Carver (“Catedral”)
Ricardo Rasú
Roberto Bolaño (livro “Estrela
distante”). Seria uma “literatura genial” (p. 182)
Roland Barthes
Samanta Schweblin (“Distância de
resgate”)
Samuel Beckett (“Poemas”).
Puthoroscopo, poema que medita sobre o tempo (p. 13).
Sarraute
Stanley Kubrick (“O Iluminado”)
Stendhal (“A cartuxa de Parma”)
Stevenson
Thomas Bernhard
Wakefield
Walter Benjamim (“Sombras curtas”)
William Faulkner
William Gaddis
Wislawa Szymborska
Para finalizar, vale dizer que “Mac
e seu contratempo” é obra sofisticada e erudita.
Vale muito ser lido e relido.
Enrique Vila-Matas é escritor
espanhol nascido em 1948 e autor de inúmeros livros. Ao que me consta, vive na
Espanha.
Javier Cercas é outro destacado e
primoroso escritor espanhol.
Ambos produzem, sem dúvida, o que
há de melhor na literatura contemporânea.
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