A casa dos budas ditosos - João Ubaldo Ribeiro
Ao ser lido hoje, em 2021, posso dizer que A casa dos budas ditosos apresenta uma construção ficcional entendida como o cúmulo do machismo. Provavelmente deve ter causado rumores já quando foi lançado, em 1999. Se tivesse sido publicado recentemente, João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) poderia ser taxado de conservador em muitos aspectos.
O
indício de que a narradora-personagem constitui um alter ego do autor é muito
forte. Ao dizer “Sou um grande homem fêmea” (p. 21) já no início, deixa claro e
anuncia, assim, o tom da narrativa. A impressão que fica é claramente a
identificação de uma escrita masculina usando apenas de uma “voz” feminina. Se
o livro fosse lido sem se conhecer a autoria, seria muito fácil identificar:
trata-se de uma ficção escrita por um homem (e machista!). Assume uma voz
feminina que se quer liberal e amoral, mas que carrega, no fundo, valores
machistas tipicamente manifestadas pelo universo masculino. Os exemplos são
inúmeros e alguns podem soar ridículos. Cito:
“aqueles
homens nas portas das lojas (...) apalpando (...) os bagos (...). A gente, as
hipopótamas, sou obrigada a reconhecer, a gente rebolava bastante quando
passava por eles” (p. 32).
“nunca
suportei camisinha” (p. 45).
“Eu
jamais admitiria ser desvirginada com camisinha, jamais!” (p. 63).
“Para
mim, sem esperma derramado, não existe sexo com homem, a camisinha é uma
castração (...), é uma privação cruel para as mulheres” (p. 122).
“se
houvesse mesmo feminismo neste país – feminismo sadio, não esta merda de querer
ser melhor do que os homens e apenas assumir o papel de dominador” (p. 46).
“muitas
de nós aprenderam a gozar por praticamente todos os buracos do corpo, basta
dominar uns truquezinhos e exercitá-los com um certo afinco; eles (...) se
tornam automáticos, parecem inatos” (p. 47).
“Não
desses bigodinhos ridículos, mas bigode cheio mesmo, bigode de homem macho” (p
53). Detalhe: na foto do autor, na orelha do livro, percebe-se que ele usa
“bigode cheio”.
“A
verdade é que, sob certo sentido, as mulheres não têm razão de queixa. (...)
Essa conversa de que a maior parte da História da humanidade foi vivida sob o
domínio masculino é bastante questionável” (p. 56).
“sou
uma feminista esclarecida-progressista” (p. 57). Alguém explica?
“cara
de corça no cio alcançada pelo macho” (p. 64).
“como
uma verdadeira fêmea deve ser inaugurada por um verdadeiro macho” (p. 65).
“Mas
mulher plenamente sadia gosta de pau duro e gosta de penetração. O resto é
conversa...” (p. 80).
“eu
tenho um tantinho de inveja dos homens, que riqueza simbólica insuportável há
numa esporrada” (p. 121)
A
narradora-personagem é o centro da atenção da obra. O que ela fala, pensa,
sente, escreve é tudo o que temos. E a tônica gira em torno de um depoimento oral,
de memórias, de uma mulher baiana, estéril, endinheirada, velha, a respeito das
suas experiências de vida durante a ditadura civil-militar, especialmente em
relação aos desejos e realizações sexuais, no casamento ou fora dele. Um
depoimento (pornográfico) para ser divulgado com o objetivo de excitar e
induzir os leitores à sacanagem.
A
narradora é uma mulher com complexo de Electra tardio, que se enxergava
sádica/libertina/pervertida/devassa, que cheirava, bebia, fazia surubas, que
mantinha relações sexuais com o irmão e com o tio. Assim, o texto vai ganhando
uma série de juízos sobre o sexo: o bom e o ruim, o digno e o indigno, o ideal
e o não-ideal, o certo e o errado, o decente e o indecente.
O
foco está em perceber a dinâmica dos desejos e das ações sexuais humanas.
Existe um esforço do autor em entender a mente humana, em compreender os
desejos sexuais aparentemente mais ocultos. Todavia, mesmo quanto tenta romper
com os padrões, acaba por conceber outra ordem, também rígida, por querer
construir um lugar de verdade.
O
discurso autoritário diante daqueles que rompem o silêncio e tentam exigir o
respeito e o direto de ser/de viver/de existir, disfarçado de crítica, se impõe
em determinado momento, como se vê: “ficamos politicamente corretos, e um babaca
aí agora está querendo uma lei proibindo piadas que possam ofender qualquer
grupo, de qualquer tipo” (p. 105). Visão limitada na forma de compreender as
relações sociais em sociedade democrática, que deve, sim, pautar-se no
“politicamente correto” para não compactuar ou legitimar preconceitos e
opressões de silenciamento de todos aqueles que foram historicamente subjugados
de modos variados.
O
certo é que o autor deseja construir uma personagem sem pudores sexuais,
disposta ao novo e ao diferente, sem preconceitos. No entanto, acaba por
construir “verdades” e por naturalizar uma suposta “safadeza” feminina. E o
pior: por naturalizar a ideia de que todas as mulheres devem “gostar de homem”
(p. 110), ou se espelhar e desejar ser e fazer como um homem (p. 121).
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