A redoma de vidro - Sylvia Plath

 


“Queria ser uma flecha avançando em todas as direções”

 

Esse livro exerceu uma força em mim.

Como já sabia do suicídio da autora, quando relativamente jovem, e ouvia alguns rumores de que o livro era “pesado”, “triste”, “deprimente”, iniciei a leitura com meu olhar mais ou menos direcionado. Tive, entretanto, boas surpresas. O enredo pode até tratar de uma experiência de vida desanimadora, mas com bastante humor, já que traz diversas passagens hilárias. Dei boas risadas em vários momentos da leitura.

Trata de uma jovem de uns 20 anos de idade dividida entre, de um lado, os sonhos voltados à escrita, à poesia, à carreira literária e à liberdade sexual e, de outro, a imposição social da necessidade moral de devoção ao casamento e à maternidade. Em alguma passagem, a narradora se assume confusa, sem saber o que deseja de fato (p. 40). Estaria ela fortemente carregada de um incômodo existencial e incomodada tanto com seu nome próprio, com sua identidade, quanto com problemas aparentemente menores, como sua caligrafia (p. 147-149). Introspectiva, ela pensa muita coisa, mas, por tédio, não expressa oralmente. O leitor consegue apreender e conhecer apenas um pouco dos seus pensamentos. No fundo ela se enxerga enquanto “delicada e silenciosa” (p. 149), preocupada também em como os outros a veem.

Narrado em primeira pessoa, com momentos bem reflexivos, aos poucos a trama vai demonstrando o drama psicológico da protagonista que desenvolve o que hoje chamaríamos de depressão profunda. Em nenhuma passagem a narradora se coloca na situação de vítima. Também não conduz o leitor ao sentimento de compaixão. Carrega profunda clareza de si, um interessante autoconhecimento das suas próprias emoções. São inúmeros os adjetivos negativos com que define seus próprios sentimentos, como melancólica, estufada, apática, desiludida (p. 99). Também utiliza expressões fúnebres (lápides, túmulos, caixões, mortes) que vinculam ao seu pensamento suicida.  

A gradação da depressão cresce ao longo da narrativa e a obra ganha um crescente em termos de tensão psicológica. A narradora não apenas se sente vazia e morta (p. 164), como pensa em diversas alternativas para acabar com a própria vida. E as tentativas são feitas. Ao falar da própria morte, alguma satisfação desponta: “saboreei a ideia de que eles [os sapatos] ficariam empoleirados naquele tronco, apontando para o mar depois da minha morte” (p. 169). Percebia sua vida como decadente (p. 189).

A narradora é franca e diz “odiar” muita coisa, entre elas, o casamento e as crianças, por quem sentia repulsa (p. 132, 248-249). Mas não aponta culpados para suas melancolias. Em uma passagem: “também odeio gente que pergunta como você está e, mesmo sabendo que você está na pior, espera que você responda “tudo bem”” (p. 198).

A narrativa é bem crítica, considerando o período em que foi escrita e publicada, início dos anos 1960 nos Estados Unidos. Em grande medida não aceita a acomodação, especialmente aquelas definidas pelas convenções sociais que esperavam papéis femininos submissos e ideias de pureza e virgindade. A personagem tem margem para a ação, para o enfrentamento daquilo que não deseja: “eu queria mudança e agitação” (p 95). Mas a conjugação do verbo “querer” fica no pretérito: “queria ser uma flecha avançando em todas as direções” (p. 95). Mesmo assim, nos devaneios da narradora, a ideia de casamento e constituição de família aparecem como horizonte de possibilidades (p. 167-168), especialmente quando reconhece sua condição anterior ao estágio depressivo (o “antigo eu”) (p. 173).

Interessante o modo como a escritora deixa grande espaço à imaginação do leitor. Nem tudo é dito. Não há grandes explicações para as ações das personagens. Esse talvez seja um ponto alto da obra.

A personagem principal é objetiva, clara, quase honesta com seus sentimentos, embora oscilante e indecisa. Digo “quase honesta” por que fiquei com forte impressão – daí aqui registro minha imaginação enquanto leitor – de que Esther tinha sua sexualidade reprimida, de que seu grande desejo fosse vivenciar uma relação homoafetiva ou apenas uma relação sexual homossexual. São diversos os indícios e muitos sutis. Ela parece efetivamente não gostar de homens. Reclama – em tom até preconceituoso – de gordos, baixos, carecas. Suas experiências foram nada emotivas e até sofridas. Uma vez questionada sobre a vontade de ver um homem nu, ela “não soube o que dizer” (p. 78), desdenhou do que viu e até ficou “muito deprimida” (p. 79). Sair com novos pretendentes seria uma “chateação” (p. 84). Ela “odiava a ideia de ter que trabalhar para homens” (p. 87). E também “nunca quis me casar” (p. 95). A vida de casada parecia “melancólica e desperdiçada” (p. 96). No final, dizia: “fiquei me perguntando se tudo o que as mulheres faziam umas com as outras era ficar deitadas e abraçadas” (p. 246). A curiosidade e vontade parecem imperar, pois, por fim: “fiquei admirando de perto a vastidão dos seios recobertos de lã da moça (...), seus lábios brilhantes” (p. 254).

A questão que fica: o que é a redoma de vidro? O estágio da sensação deprimente de viver, o sufocamento da vida e o pensamento suicida em si.

São inúmeras as passagens na obra que apontam para o caráter depressivo da protagonista:

“o silêncio me deprimia (...) Era o meu próprio silêncio” (p. 26). 

“Sempre que fico triste pensando que um dia vou morrer, ou perco o sono de tão nervosa, (...), me deixo sofrer...” (p. 27).

“Não sei direito o motivo, mas não tem nada de que eu goste mais do que comida” (p. 31).

“Eu estava me sentindo bem deprimida” (p. 36).

“...fiquei me perguntando por que eu não conseguia mais cumprir as minhas obrigações até o fim. Isso me deixou triste e cansada” (p. 37).

“lágrimas que desabaram sobre meu prato...” (p. 38).

“eu passava o tempo inteiro escrevendo coisas obscuras sobre James Joyce” (p. 41).

“Eu tirei A em física, mas foi em meio a uma crise constante de pânico” (p. 42).

“E se a chefe de departamento soubesse o quanto eu estava assustada e deprimida” (p. 44).

“A essa altura comecei a me sentir esquisita” (p. 49).

“e aquilo me deu vontade de chorar” (p. 53).

“eu só tinha sido completamente feliz até os meus nove anos de idade” (p. 86).

“Eu sou neurótica” (p. 106).

“Eu não queria tirar foto porque sabia que ia chorar. Eu não sabia o motivo...” (p. 115).

“Eu não via motivo para me levantar. Eu não ansiava por nada” (p. 133).

“aquele lugar parecia tão seguro (...) porque não tinha janelas” (p. 143).

“O suor acumulado no algodão produzia um cheiro azedo mas acolhedor” (p. 143).

“Ficava cansada só de pensar naquilo. Queria fazer as coisas de uma vez e me ver livre de tudo” (p. 144).

“estava tão assustada, como se estivesse sendo enfiada cada vez mais fundo num saco escuro, sem ar e sem saída” (p. 145).

“tudo que as pessoas faziam me parecia estúpido, uma vez que todo mundo morre no final” (p. 145).

“ - Como você está se sentindo? - Tudo bem. Era mentira, eu estava péssima” (p. 162).

“eu me sentia apática e derrotada” (p. 163).

“que eu passasse o dia no quarto, com as venezianas fechadas” (p. 174).

“Se a decisão final dependesse de mim, eu estaria morta num instante” (p. 178).

“Para a pessoa dentro da redoma de vidro, vazia e imóvel como um bebê morto, o mundo inteiro é um sonho ruim” (p. 266).

A tradução é de Chico Mattoso e o livro foi publicado em 2019 (2ª edição) pela editora Biblioteca Azul. A primeira edição original é de 1963, ano em que Sylvia Plath, suicidou-se, em Londres, asfixiando-se pelo gás de cozinha de seu fogão, com idade de 30 anos. Por conhecer o destino da autora, li como quem lê um diário, uma escrita de si. E valeu muito.

 


Comentários

Postagens mais visitadas