Estação Atocha, Ben Lerner


Fingir de fingir ser poeta

“A leitura, em vez de me afastar do mundo, tornou mais vívida a minha experiência do presente” (Ben Lerner, p. 108).

Livro inteligente, publicado em 2011, muito bem escrito e traduzido. Seu autor, Bem Lerner, é poeta e romancista norte-americano nascido em 1979 e autor de mais dois romances ainda não traduzidos no Brasil.
Trata das experiências de Adam Gordon, um jovem estadunidense que estava na Espanha a partir de uma bolsa de estudos para desenvolver um projeto que tinha por objetivo explorar poética e politicamente a Guerra Civil Espanhola e seu legado literário. Um estudante, talvez com seus 30 anos, que lia, escrevia, namorava, bebia, fumava, usava antidepressivos, consumia alguma droga e, de alguma forma, progredia com seus objetivos acadêmicos, a partir da intensa relação que ele estabelecia entre a vida cotidiana que levava e o seu projeto de escrita poética. Adam é sensível na sua capacidade inventiva e imaginativa, especialmente ao conseguir perceber criticamente suas próprias atitudes e pensamentos. Como escritor, admira palavras e sons: “‘Eucalipto’. Demorou um pouco até eu reconhecer essa palavra linda” (p. 182).
Sua temporada de estudos em Madri é marcada por diversas experiências pessoais e acadêmicas/profissionais, mas a sua impressão sobre a cidade merece, na minha opinião, ser mencionada: uma cidade com clima vulgar e libidinoso (p. 25), cheia de turistas, poeira, calor e péssima comida (p. 215).
Ao descrever as fases do seu projeto, o autor/narrador demonstra a beleza da sua prosa e o caráter um tanto hermético de suas reflexões. Na página 80 temos um exemplo significativo de uma verdadeira poesia em prosa:

“...perguntava-se a incomparabilidade entre a linguagem e a experiência era um problema novo ou se minha experiência da minha experiência seria o resultado de uma vida danificada por anos de pornografia e privilégios, se já haviam existido épocas felizes em que o céu estrelado representava o mapa de todos os caminhos possíveis, ou se essa rígida divisão da experiência em inominável ou não vivenciável constituía, ela mesma, a experiência, para qualquer pessoa em qualquer tempo” (p. 80).

Adam escrevia e gostava de ler poesias, a “mais sacrossanta das artes” (p. 52), pois elas lhe ofereciam uma “experiência profunda” (p. 23), embora julgasse que seus cadernos estivessem “cheios de poemas incompreensíveis” (p. 133). Sua relação com a vida poética e com a própria Espanha é marcada pela reiterada afirmação de falta de domínio da língua, pelo acesso fácil ao consumo de haxixe e maconha e pelas “profundas experiências artísticas” que racionalmente observava com aqueles com quem se relacionava. Ele ironiza essas experiências e também evidencia em várias passagens o poeta que não quer ser: “a ideia de ser um daqueles poetas que eram possuídos por repentinos ataques de inspiração me repelia” (p. 70). E demonstra, por inúmeros exemplos, as suas perspectivas que seriam marcadas pelo afastamento, pelo olhar de fora, pelo distanciamento de si e das próprias experiências: “Observei a cena, como se eu estivesse do lado de fora, lá no jardim, deslumbrado” (p. 78). Aliás, o distanciamento de si é a condição e expressão da poesia do protagonista: “eu me drogava para tirar o máximo proveito dessa condição preexistente (...), embora vivida a uma distância de mim mesmo” (p. 83).
O fato de o narrador (primeira pessoa) não compreender suficientemente bem o espanhol e de apontar para supostas impressões possíveis sobre a fala de outros personagens, revela a potencial capacidade criativa do escritor. Nesse sentido, vale mencionar também a frequência entre a dualidade “real” e “virtual” e o recurso a frases longas, que exigem concentração do leitor ou mesmo mais de uma leitura. A criação de supostas mentiras/verdades no texto ficcional, demonstra o quanto a obra de Bem Lerner é incrível na capacidade de imaginação literária do autor.  
A suposta timidez do protagonista e sua incerteza sobre o significado literário de sua obra, o suposto estado permanente de desconfiança de si e de sua própria capacidade de produzir algo significativo e crítico aponta não apenas para uma humildade e modéstia necessária entre os escritores, mas também para o entendimento de que o reconhecimento não deve vir de si/para si, mas do outro, do leitor. O narrador se expõe, coloca/diz o que pensa e imagina em diferentes momentos e situações, sem pudores, sem medos, sem falsos moralismos. É possível desconfiar da moral do narrador, mas é um personagem tão bem construído que convence, mexe e toca o leitor. O personagem só é considerado ingênuo e insensato se a leitura for tomada ao pé da letra. Ele é contrário a tudo isso. É capaz de reinventar-se, de “fingir”. A própria personagem Teresa, em dado momento, o questiona: quando Adam pararia de fingir que finge ser poeta. É ainda interessante o modo como o autor constrói o narrador como tendo absoluta consciência de seus sentimentos e suas atitudes; uma pessoa que, com suas contradições, consegue se ver no espelho. A constante autonegação da sua genialidade (p. 197) é, na verdade, uma expressão de modéstia.
Adam tem consciência de que produz poesia para comunicar e denunciar o fascismo e também os próprios Estados Unidos como “um império assassino e prepotente” (p. 59), responsável, em alguma medida, pelo atentado terrorista na Estação Atocha, em Madri. Ele se enxerga como a personificação da política estadunidense e constrói uma sátira perspicaz: “Eu era um mentiroso compulsivo, violento e bipolar. Era um autêntico americano” (p. 191).
Ele quer pensar os poemas “como máquinas capazes de fazer eventos acontecerem, de mudar governos, a economia, ou apenas a sua linguagem” (p. 55) e como “a incapacidade da linguagem de cumprir a potencialidade que ela mesma afigura” (p. 198).

“... os poemas sempre representariam para os leitores telas sobre as quais poderiam projetar sua desesperada fé na potencialidade de uma experiência poética” (p. 48)

“... a tarefa mais urgente da poesia é restabelecer formas de complexidade e permanência suficientes em alternativa às atraentes superfícies descartáveis da cultura mercantilizada. Não é possível superar a mercantilização da linguagem refugiando-se num passado imaginário (...) que é a marca distinta da fantasia cultural fascista” (p. 54).

            Por tudo que a obra me fez pensar, pela prosa poética e pela inteligência das reflexões sobre literatura e poesia, digo que foi um dos melhores livros que eu li nos últimos meses. Uma gostosa satisfação de leitura prazerosa.



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